A obra de Cervantes repassa passagens de significado para a política e para os políticos.
O primeiro elemento político da obra prima de Cervantes - o Dom Quixote de La Mancha - é a própria forma em que a novela se desenvolve. Quixote e seu escudeiro Sancho, a todo tempo e em todas as circunstancias, mantêm diálogo.
Ora, o diálogo é o mais essencial atributo da política. Só mediante o diálogo o político permite o avanço do pensamento e a articulação das vontades múltiplas e muitas vezes dispersas e antagônicas. Dialogar é despir-se de preconceitos e aceitar o outro com seus atributos e defeitos. Tal como é, humano, e portanto depositário de virtudes, vícios, erros e acertos. O diálogo é caminho de duas trilhas e, em cada uma delas, coloca-se alguém que, como o outro, também é humano e, assim, portador de todos os atributos inerentes a esta condição. Aqui, pois, a primeira grande virtude da obra cervantina. Ensinar que pelo diálogo as pessoas se interlaçam e aprendem mutuamente.
Sancho, um rústico, Quixote, um homem de livros, sem barreiras preconceituosas, dialogam e dialogando atingem a cada momento novos patamares de entendimento. Entre os infinitos diálogos mantidos entre as duas figuras centrais da novela transcorrida nos muitos caminhos da Mancha, certamente, um que sensibiliza e emociona o político, particularmente se liberal, é a fala de Quixote sobre a liberdade:
" A liberdade, Sancho, é um dos mais preciosos dons que os homens deram aos céus; com ela não se igualam os tesouros que a terra encerra e o mar esconde; pela liberdade assim como pela honra se pode e se deve aventurar a vida, e pelo contrário, o cativeiro é o maior mal que pode sofrer um homem".
Como afirma Vargas Llosa, examinando o Quixote, esta idéia de liberdade é a mesma que, a partir do Século XVIII, os liberais ecoaram por toda a Europa e fizeram chegar às Américas. Esta idéia de liberdade é suporte da individualidade de cada pessoa e permite que cada um decida sobre sua vida sem pressões ou condicionamentos. A decisão individual, quando há liberdade, é um ato de inteligência e de vontade própria.
Sabe-se que Cervantes falava de cátedra sobre o ônus da falta de liberdade. Conviveu com o cárcere, em Argel. Herói da batalha de Lepanto, quando os espanhóis venceram os turcos, foi por estes capturado ao se dirigir a Nápoles. Corria o ano de 1575 e por outros longos cinco anos Cervantes foi escravo do grego Dali Maní. Tentou a fuga por quatro vezes. Amava a liberdade. Sempre fracassou em sua vontade de ser livre. Era recapturado.
Foi salvo, finalmente, por obra dos padres Trinitários, que o resgataram mediante o pagamento da importância de quinhentos escudos ao bei de Argel. De sua prisão em Argel, Cervantes partiu diretamente para Lisboa. Lá se instalara a corte de Felipe II, o nosso Felipe I. Sua presença em Portugal se reflete em sua novela maior. No episódio leve e belo da La Arcadia Fingida, Cervantes recorda-se do vate dos navegadores:
"Trazemos estudadas duas éclogas, uma do famoso poeta Garres e outra de excelentíssimo Camões em sua mesma língua portuguesa, as quais até agora não representamos"
Aqui, ainda o ato do dialogo entre culturas, próprio de Cervantes.
Lembrou-se, em passagem suave da figura de Luís de Camões, mostrando que, apesar dos conflitos latentes entre Portugal e Espanha, o novelista buscou a permanência dos valores culturais de Portugal e de sua própria língua. Mostrava-se aqui, também, um político em busca de consensos. Mas, Cervantes é incansável na idéia de liberdade individual. No rico castelo dos Duques, aqueles que por mera chalaça ofereceram a Ilha de Barataria ao governo de Sancho, mostra-se descontente com as riquezas e fartura de comidas, por que sabia que tantos bens rebaixava sua liberdade:
"porque não goza com liberdade que gozaria se fossem seus os bens"
e prossegue em outro momento:
"as obrigações recompensas dos benefícios e favores recebidos são ataduras que não deixam o ânimo livre! Venturoso aquele a quem o céu deu um pedaço de pão sem que reste a obrigação de agradecer a outro que não o mesmo céu!"
Aqui Cervantes antevê os direitos sociais do Século XX. Não se pode ser verdadeiramente livre se não se possui algo por esforço próprio ou direito universal. As benemerências conferidas individualmente tornam as pessoas fracas e submissas. Fragilizam a dignidade pessoal. Marcam as pessoas com o estigma de serviçal e afastando-as da dignidade própria de cada indivudalidade. Mais uma lição política de Quixote, na pena de Cervantes.
É, por sua vez, exemplar a carta que Don Quixote de la Mancha dirige ao governador da Ilha de Barataria. Há rigor nas observações destinadas a Sancho, conduzido ao cargo por vontade dos duques, que buscando diversão, usaram as duas figuras como alvo de seu entretimento, tal como fazem modernamente as redes de comunicação, na oportunidade dos pleitos eleitorais.
Quixote recomenda ao governante algumas premissas para bem dirigir a comunidade:
• Aja contra a humildade do coração, porque o adorno das pessoas que ocupam altos cargos deve ser de acordo com as exigências;
• Vista-se com a gravidade do cargo, sempre composto e sem adornos. Não use como juiz as vestes de soldado, seja sempre limpo e bem composto;
• Para ganhar a simpatia do povo, ser educado e distribuir alimentos em abundância, pois não há coisa que mais fatigue o coração dos pobres do que a fome e a carestia;
• Não edite muitos decretos e se o fizeres procure que sejam bons e que sejam cumpridos, pois as leis não guardadas e não executadas são leis de rãs, tal como na fábula de Esópo;
• Ser virtuoso nos atos e padrasto dos vícios;
• Não ser sempre rigoroso e nem sempre brando;
• Visite os cárceres e os mercados, a presença do governante consola os presos e assusta os maus mercadores que restabelecem as balanças;
• Mesmo que o sejas, não se mostre invejoso, mulherengo ou glutão, pois conhecendo o povo as inclinações do governante apontará suas baterias e o levará ao profundo da perdição;
• Leia e releia, passe e repasse a leitura das instruções e dos documentos oferecidos;
• Recorde-se que a ingratidão é filha da soberba e um dos maiores pecados.
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